domingo, 31 de março de 2013

Sou a morte. Você tem me acompanhado nesses últimos dias. Não, pensando bem, você não tem me acompanhado... você não conseguiria... não suportaria. Ninguém tem estômago pra me suportar em toda a minha totalidade. Estou apenas me revelando um pouquinho pra você. Revelando como chego. E só vou até aí.

Não revelarei mais detalhes do que você pode suportar. Não quero tirar seu sono. O sono é meu primo e respeito-o... assim como respeito você. Quero que você viva uma vida boa.... que tenha bom sono e bons sonhos.

Quando chego, a vida vai embora; não tem jeito, é assim desde que o mundo é mundo. O que acontece no segundo seguinte à minha chegada já não compete mais a mim. Eu só tenho de chegar... acabar com a vida. O depois é trabalho de outro, de outros...

Fui incumbida desde que sou o que sou de chegar a todas as pessoas. Nenhuma vai passar pela terra sem passar por mim. Ou eu passar por elas. É a lei da vida... e a lei da morte.

Gosto de ouvir as pessoas falarem de mim. Já ouvi cada coisa. É engraçado, só de ouvir a palavra 'morte' algumas pessoas sentem medo. Não deveriam ter medo de mim; no máximo, talvez, alguns vários deveriam ter medo do que vem depois. O depois pode ser verdadeiramente aterrorizador, pra alguns vários.

No fundo, acho que não é exatamente medo de mim que uns têm... é medo de como eu posso chegar, com dor, com sofrimento. É, às vezes eu chego assim mesmo... mas não sou eu que causo a dor e o sofrimento, se você pensar bem. Dor e sofrimento sentem quem tem vida; quando eu chego eles já estão instalados, tomaram conta. Eu chego, eles acabam. Então, não me culpe. Não causo dor em quem chego.

Sim, causo dor em quem fica. Mas isso não é responsabilidade minha. Não tenho nada a ver com isso.

Eu sou a morte... não que talvez isso importe pra você (hoje).

Continua....
Domingo de sol. "Maravilha", pensou Luis, "ótimo dia pra um churrasquinho de inauguração da laje."

Luis, 37 anos, mestre de obras... obras pros outros (dizia a mulher, Sônia). Até que enfim sobrara um dinheirinho pra terminar a laje da sua casinha. Não exatamente terminar, mas já dava pra reunir dois ou três casais de amigos e fazer um churrasquinho no domingo; colocar uma piscina (que um dia ele iria comprar) pras crianças - Maria Luiza e Rafael - seus filhos, e os filhos dos vizinhos, e... uma geladinha no fim de tarde, e.... bem, continuava sonhando Luis.

Ainda não estava exatamente como queria, faltavam os acabamentos, queria cercá-la, também. Precisava impermeabilizar...

Lembrou do dia da concretagem... os amigos ajudando... que mutirão! E agora, um churrasquinho pra comemorar. Chamou o pessoal da ajuda abençoada.

Maria Luiza e Rafael, 5 anos... gêmeos. "Meus filhos? Duas crianças lindas, pele morena como a da mãe, cabelos encaracolados e inteligentes como a mãe", era o que Luis sempre dizia orgulhoso, e completava "um presente de Deus."

E realmente ele tinha razão (outro dia conto mais detalhes).

Na casinha de 60 m² tinha um quartinho, pequeninho, mas bem confortável, para D. Inês, mãe de Luis. Estava fraquinha ela. Tudo havia começado com uma dor abdominal, febre, perda de peso...O diagnóstico? Doença de Crohn que evoluiu rapidamente para um câncer no intestino. Estava no limite entre conseguir fazer alguma coisa por conta própria e a invalidez.

Mas era bem cuidada... ninguém duvidava que iria melhorar.

13 horas.... a maior festa na laje, as crianças brincavam felizes, o aparelho de CD intercalava samba e pagode... aquele cheirinho tão famoso de churrasco (hummmmm) no ar... a conversa seguia animada... um clima de felicidade.

"A boia está pronta!", exclamou animadíssimo Luis... "Rafael?! Rafael?! Cadê Rafael?" "Ele acabou de descer", falou Marisa (outro dia conto detalhes), sua vizinha da casa em frente.

Luis se dirigiu a escada e colocou o pé no primeiro degrau, pronto pra descer. "Papai, papai!!", ouviu seu filho chamar... "O que é Rafinha?"  "Suba, venha comer!"... "Papai... a vovó não quer acordar..."

Sim.... eu tinha acabado de passar por ali.

Continua....


sábado, 30 de março de 2013

Katsuo, 68 anos. Ao olhar seu rosto e ver a pele encarquilhada, com dobras, seca, flácida, quebradiça e cheia de manchas senil, causadas pela intensa exposição ao sol, e suas mãos não menos encarquilhadas e trêmulas, parece ter mais de 80 anos. Mas o pior eram seus olhos encovados como que prenunciando sua próxima morada.

Katsuo vive em Kyushu, em Minamata, desde que nasceu. Vive em uma parte da ilha pouco povoada... com poucos casebres, distantes uns dos outros.

Eram 6 horas da manhã, Katsuo abriu seus olhos sonolentos. Aquela maldita tosse fizera-lhe companhia a noite toda... como já há pelo menos três meses. A tosse começava devagarinho, parecia um leve pigarro. Cof.. cof... cof... aparecia sem pedir licença e se instalava.

Ia aumentando, parecia que ia arrebentar o peito, o corpo todo doía... "Tenho de resolver isso", pensou ele, enquanto se arrastava pra fora da cama, pra fora do quarto, pra fora do casebre.

Olhou para as montanhas ao seu redor... respirou profundamente o ar puro e sentiu a costumeira ardência no pulmão. Sentou no banquinho ao lado da porta... encostou-se lentamente na parede, olhou mais uma vez as montanhas que amava mais que tudo naquele lugar,  fechou os olhos e, sem pensar em mais nada, aí ficou para alívio de seu corpo cansado, no consolo da morte...

Sou boazinha....sim...

Continua...
Marcelo...

Alto, loiro, olhos esverdeados, 27 anos.... um gatão, dirão as gatinhas, né!?

Desde criança uma enorme paixão por esportes. Futebol, foi o primeiro... depois, tênis, natação, taekwondo - uma arte marcial coreana (sei que há outras grafias... além de inteligente, tenho muito conhecimento, sim). Marcelo sempre participa de campeonatos e sempre fica em segundo ou em terceiro lugar.

O maior sonho de Marcelo é ostentar a medalha de primeiro lugar. E ele vai chegar lá... pelo menos é no que acredita... é a sua motivação para acordar todas as manhãs às 5 horas. treinar, correr, levantar peso, correr.... respirar fundo, tomar banho e ir para o trabalho.

2 de janeiro de 2025.... hoje não seria diferente....talvez apenas pelo fato de que não iria trabalhar, estava curtindo seu primeiro dia de férias.

Acordou no horário de sempre, desceu pra sua academia particular, no primeiro piso de sua casa, que fica na rua detrás do edifício de Pedro. Uma casinha simpática, tão simpática que inibe a minha entrada. Tenho brios, sim... se você quer saber.

Ficou lá uma hora. Subiu pra cozinha tomou um copo de energético (uma mistura meio incompreensível que sua mãe prepara no liquidificador todos os dias). Ela vai se sentir tão orgulhosa quando seu filho ganhar o primeiro  lugar em uma competição. "O segundo lugar, por Marcelo, é muito pouco", fala sempre ela com orgulho para as amigas. "Tenho de lembrar de nunca mais falar sobre isso com Joana", pensa ela com grande tristeza naquele dia.

E saiu para correr. Faz um pouquinho de alongamento em frente ao prédio de Monica, expiando com o canto do olho a porta de entrada do edíficio.

Monica também tem uma rotina matinal - que outra hora conto pra você.

Sai do edifício, pontualmente, às 7:15 horas, a Monica. "Linda, linda como sempre", pensa Marcelo que a segue com os olhos enquanto ela atravessa a avenida Beira-mar. Ops, hoje ela resolveu começar a correr 100 m antes do ponto de onde ela começa sua corrida matinal.

E Marcelo vê... corre... atravessa a avenida com os olhos fixos nela, mais três passos e ele chega ao calçadão... mas ele, na sua corrida atrás da paixão, esqueceu que  existem semáforo... tstststs, Marcelo.

Fernando Augusto, o motorista do Gol preto, percebe o rapaz, sabe que se não for rápido vai direto pra cima dele, não há tempo pra frear... olha rapidamente pelo retrovisor e desvia... buzinando como um louco.

"Ufa", diz Marcelo e respira aliviado, quando se dá conta de que por pouco, por muito pouco, poderia ter sido atingido pelo carro.... e... passou rente a mim.

Eu disse que às vezes fico paradinha, paradinha da Silva....

Continua....

sexta-feira, 29 de março de 2013

Me movo na velocidade da luz.... mas também sei andar devagarinho. Às vezes, muito, mas muito raramente, fico parada... apenas por segundinhos. Sempre estou no lugar certo e na hora certa. Nunca chego atrasada, nem adiantada... sou pontualíssima... mais que britânica. E olha que não carrego nenhum relógio comigo. Imagina como seria se eu fosse como Londres e suas centenas de relógios públicos espalhados pela cidade.

Pedro olhou para o mar... uma última vez; depois das drogas, sua maior droga (que não é nenhuma droga) era o surf. Ele adorava surfar. Mas um dia resolveu só experimentar a onda da maconha, daí partiu pro crac e... bem isso não é história que compete a mim contar.

Olhou pro mar, tão intensamente quanto pôde, e pensou: "Se existe outra vida depois desta, só vou surfar.... se existe céu, nas nuvens vou me equilibrar, se não existe nada... então levo e seguro comigo pra todo o nada a imagem do que mais me fez feliz na vida que tive." Pronto, ele estava pronto. Definitivamente aquela era a sua hora.

Eu, passivamente, assistia a tudo do outro lado da rua.

Então, ele se jogou. Gritei: nãããããõooooo!!! Eu sempre achei que ele não teria coragem.

Ele ouviu meu grito, tentou, arrependido de ter impulsionado seu corpo para a morte, se agarrar nas grades da sacada do décimo-primeiro andar, bateu com força o corpo no décimo andar e ploft!.... sim, ploft dentro da caçamba de um caminhão de lixo estacionado na calçada (desobedecendo às leis de trânsito, por uma boa causa). Isso tudo aconteceu em milionésimos de segundo.

Acordou dezoito dias depois em uma cama de hospital. Recuperando-se das inúmeras machucaduras causadas pela queda. E uma lesão na coluna cervical um pouco acima da sexta vértebra o tinha deixado tetraplégico.

Quando não é hora, não é hora. E não adianta insistir.

Continua.....
Quer saber mais sobre mim?

Sou trabalhadora incansável...minha rotina é igual a de um canteiro de obras. Não fico parada um segundo; ao contrário, me movimento na velocidade da luz. Estou aqui, estou ali, estou lá... e de volta pra qualquer lugar. Sou insaciável, insatisfazível, mesmo. Jamais me satisfaço plenamente, sinto sede inesgotável de vida.

Pedro.... Marcelo.

Pedro, mais uma noite sem dormir. A abstinência está matando-o aos poucos. Ele prefere, ele quer morrer, mas não sabe que a decisão de morte está nas minhas mãos, somente.

Arrasta-se para fora da cama. Entra no chuveiro... "Quem sabe a água fria me dê um pouco de ânimo." Pensa com seus botões. Sim, eu leio pensamentos.

E fica lá, fica... fica... e eu só rondando. Rondo porque o ouço me chamando.

Desliga o chuveiro, enrola-se na toalha e vai para a sacada do seu apartamento no décimo-segundo andar. Lá longe, o sol dourado começa a aparecer. O mar está calmo, a brisa suave bate no seu rosto. "Era para eu me sentir animado", pensa ele. "Tenho tudo pra ter uma vida feliz... é só mais um pouco de luta e me liberto da escravidão das drogas." (É o que todo mundo diz). E ele olha ao seu redor... olha o mar, olha para a rua que já começa a se movimentar... vê pessoas andando na Beira-mar, correndo na Beira-mar.

Vê a figura atlética de um rapaz preparando-se para a corrida... ele faz alongamentos.

Tudo tão perfeito. Tão normal. "Por que me sinto tão mal?", grita, desesperado. Respira fundo, o olhar concentrado, tenso. Eu sei, ele está tomando a decisão mais difícil que alguém pode tomar: sair da vida por conta própria. Virar as costas, sair e bater a porta.

Continua....
Dia 1º de janeiro de 2025.

O sol surgiu exatamente na hora em que tem de surgir. Estendeu seus mil raios pela terra, por um lado da terra, of course, lenta e preguiçosamente. Não havia nuvens no céu. Há dias não chovia. Uma leve brisa soprava da direção do mar para a terra. O ar fresco se espalhava docemente pela cidadezinha que começava a acordar. Ia ser outro lindo dia de praia.

De uma em uma as casas adormecidas abriam seus olhos para mais um dia de vida. Joana mal sabia que seria um dia de morte.

Como de costume, pulou da cama quando ouviu Marquinhos chorar. "É minha vez", disse para Fábio, que moveu lentamente o corpo ao seu lado e voltou a fechar os olhos (pensando consigo mesmo: 'Ela se enganou')... e correu preparar a madeira, porque sabia que só assim Quinho se consolava.

Entrou no quarto do seu bebezinho querido, colocou a mamadeira sobre a mesinha no lado do berço. Pegou seu bebê amado e apertou-o nos braços. "Aproveite", pensei eu.

Como todas as manhãs, ele estava com a fralda ensopada. Colocou-o sobre o troca-fraldas, tirou o pijaminha, abriu a fralda e um cheiro bem ruinzinho tomou conta do quarto perfumado do bebê.

Fez uma cosquinha na barriga do bebê, que riu, uma risada gostosa. "Aproveite", pensei eu. Ela beijou, e beijou, e beijou a barriginha, enquanto ele dava risadas que enchiam o quarto com o som de bebê feliz.

"Vou abrir uma frestinha da janela", falou ela. Deixou o bebê por um instante, um instantezinho de nada... mas o suficiente. Eu estava aí.

O bebê agora não passava de um corpinho no chão.

Sou má.... às vezes.

Continua...
Sou leve.. sou quase imperceptível... não faço estardalhaço nenhum avisando minha chegada, não toco sirene quando estou me aproximando, nem uma banda anuncia que estou por perto, você não ouve barulhos de passos na areia, nem nos cascalhos, nem na entrada da porta de sua casa, nem nas escadas. Ãh! nunca toco a campainha... vou entrando (sou rainha, remember?).

Sim, sou sorrateira; ajo às ocultas, sem ser pressentida; faço o que tenho de fazer pelas caladas (da noite... do dia); sei ser astuta; sou matreira - chego sem ser notada, nem vista; sou velhaca, possuo toda a experiência do mundo - literalmente (existo quase desde que o mundo é mundo); sou capciosa, todo o cuidado do mundo é nada comigo; sou cavilosa, em qualquer situação do mundo, no mundo, sei usar minha inteligência (sim, sou inteligente).

Cavilosa... palavra fora de moda, mas eu não saio de moda e não existe melhor definição para a minha alma.

Sou noite sem amanhã.

Às vezes....

Continua...

quinta-feira, 28 de março de 2013

Você sabia que eu só existo porque você existe? Eu sou dependente de você. Tenho de admitir, se você não existisse, eu jamais iria existir. Acabei de sorrir. Eu sei, você não viu. Você não me vê até chegar a sua hora... às vezes demora; outras, logo, logo, levo você embora.

E de você em você vou enchendo meu reino. Lá sou rei, sou rainha. E você é só mais um... morto, completamente morto. Lá ninguém faz nem a coisa mais simples que é respirar, porque lá não há sequer ar, não que isso importe, pois lá só há morte,

Pense se é assim que você vai querer pra sempre não viver.

Continua....
Caminho devagar, não tenho pressa. Também não importa o caminho, sempre chego aonde quero chegar. Eu sou a Morte. Quando chego é pra levar.

Nunca trago nada. Ninguém me ensinou a dar; então só sei tirar. Amo o que faço. Acho até que você já percebeu. Você tem ideia da quantidade de pessoas que com a minha chegada morreu?

O meu contrário é a vida. É sempre um jogo entre nós. Um jogo de vida e morte. Eu até, às vezes, a engano, deixando-a pensar que ela tem sorte. Deixo-a por mais uns instantes, uns meses mais, um ano ou dois. Depois dou o bote... o que não me falta é sorte. Eu sou a Morte.

Minha história não é fácil de contar, mas eu juro, vou me esforçar. Você só vai ter de ter paciência, porque trabalho pesado. Olhe, olhe... há morte pra todo lado.

Também não espere que vou me dar o trabalho de o tempo todo rimar... nem de que em ordem cronológica as coisas vou contar...nem sei se volto aqui amanhã, ou depois da manhã. Mas eu volto, sempre volto. Se você quiser pode me esperar... ou não, mas que eu vou chegar, ah! eu vou chegar.

Continua....