quinta-feira, 20 de março de 2014

Maria Clara desligou o telefone. Colocou ordem em sua mesa, guardou na gaveta seus óculos de grau, afinal naquela noite não leria nada... tinha outros planos.

Levantou-se, arrumou a cadeira, pegou o porta-retrato e olhou demoradamente o sorriso de Anabela... o sorriso mais lindo do mundo.... aquele biquíni era lindo demais, naquele corpo lindo demais. Colocou o porta-retrato de volta no seu lugar.

Foi até a janela... olhou o sol já tão próximo do horizonte... um fim de tarde de verão. Lembrou-se de quando conheceu Anabela... a linda Anabela, dos doces olhos cor de mel... o sol tinha esse poder de rememoração... no que dizia respeito à Anabela.

A praia de Jurerê estava lotada naquele fim de tarde quando seus olhos cruzaram... e o cupido acertou em cheio seu coração. No meio de tantos olhos, os únicos que os seus viram foram os de Anabela.

A conversa foi leve, o toque foi leve... mas Maria Clara sabia da força daquele sentimento que se apoderara dela. Há um mês conhecia Anabela, há um mês vivia em êxtase... há um mês queria aquilo pra toda a vida. Nada mais natural... todo mundo quer um amor pra toda vida e, quando encontra, se encontra e é encontrado...

A família. Bem, como contar pra uma família tradicionalíssima que jamais se casaria com um homem? Que amava uma mulher? Que era com essa mulher com quem sonhara toda a sua vida e que sonhava viver com ela todo o resto de sua vida.... sim, tinha sido uma paixão fulminante.

Desceu pelo elevador. Já havia decidido. Combinara de pegar Anabela às 19 horas na Beira-Mar... próximo ao trapiche.

De carro acelerado foi seguindo com o coração acelerado... porque estaria num instante com Anabela, porque tinha medo da reação de seus pais... porque seu sexto sentido lhe dizia que alguma coisa não andaria bem.... que droga... por que existe sexto sentido?

Seus olhos viram Anabela admirando o mar... o coração bateu mais forte... suspirou profundamente... logo estaria nos braços de sua amada

Só viu o motoqueiro quando já não dava mais pra desviar... freou, o carro rodopiou na pista, rodou e rodou mais uma vez.... invadiu a pista de pedestres... um baque... foi a última coisa que sentiu.

Já devia ser de madrugada quando acordou... demorou um tempo pra lembrar do que havia acontecido, pra perceber que estava em um quarto de hospital... pra ver seu pai ao seu lado segurando sua mão.

Um suspiro... '"que bom que você acordou, Clarinha... está tudo bem com você... só ficamos aqui por precaução... pra se recuperar... cedinho vamos pra casa..."

Ninguém se feriu? - pergunta Maria Clara...

Uma sombra passa pelos olhos do pai... 'sim... o carro acabou batendo em uma moça... ela... ela... lamento, minha filha... a moça não resistiu... uma batidinha de nada... lamento muito".

O pai jamais ficaria sabendo que estava falando de  alguém que já era família...

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

É fevereiro. O frio congelou tudo... quase tudo. A camada de gelo aumenta conforme o tempo passa. Tudo branco... quase tudo.

Shana acorda cedo, com seu pai tem uma viagem breve pra fazer. Sua avó precisa de cuidados e toda semana Izna, o pai, e um de seus quatro filhos se revezam para limpar a casa, catar galhos de árvores para aquecer a casa do frio do Norte. Prepraram pão e sopa. Organizam tudo... ou quase tudo.

É hora de partir... a neve se acumula, há barreiras geladas quase intransponíveis... as estradas são perigosas, estão perigosas. Mas é hora de voltar pra casa. A mãe de Shana e seus três irmãos a esperam. E com a guerra, atrasar significa um aumento em progressão geométrica do medo de quem espera.

Então, melhor partir... e pedir a Alá que proteja... o pai, a filha... o carro.

8 horas antes - Tudo se faz escuro, tudo se congela num frio paralisante. Na casa de Shana, a mãe e os irmãos dormem. O fogo do fogão já se apagara a tempo, uma corrente de ar gelado passa pelas frestas da janela, rachada. Lá fora tudo se verga ao peso da neve... dentro tudo se verga ao peso do medo.

A guerra e a sua inutilidade - só eu tenho trabalho mil e mil vezes multiplicado. Enfim, a guerra deve servir pra alguma coisa, acho... desde que me conheço por morte eu vejo homens em guerra.

Tropas russas invadem o vilarejo de Shana. Os humildes habitantes dormem o sono do descanso, um pouco de sono, um pouco de paz.

Os soldados embebam de gasolina algumas casas, ateiam fogo. Eu assisto com os olhos mortos. Nem toda a neve gelada foi capaz de atenuar o desastre. Tudo queimado... casas, móveis, corpos... passei por aí, mais uma vez.

10 horas da manhã - Shana e o pai chegaram ilesos, Alá os protegeu. Encontram crateras negras onde antes era sua casa... a casa de seus vizinhos. Crateras negras no branco imaculado da neve.

Não há mais casa, nem mãe, nem esposa, nem irmãos, nem filhos.